Nesse fim de década, ao mesmo tempo fim do século e do milênio, o nome China há de, por certo, suscitar noções confusas e de qualquer modo significar muito pouco a 99,99% de nós brasileiros, acostumados a associá-lo a um país nebuloso, tão desconhecido e quase tão remoto quanto Marte ou a Lua. No entanto, nos cerca de trezentos anos que vão do começo da colonização à Independência, durante os quais passou do estágio edênico em que o encontraram em 1500 os portugueses para se transformar não sem traumas de paraíso perdido em país ocidental, foi o Brasil sucessiva ou cumulativamente aborígene, lusitano e por conseguinte também semita e já negro,1É conhecido o papel de destaque desempenhado pelo elemento semita, tanto árabe quanto judeu, na plasmação do homem português: menos sabido, mas também importante é o do elemento africano, já numeroso em Portugal antes de o Brasil ser descoberto. Na verdade, o processo de miscigenação entre lusos e africanos não teve início no Brasil, e sim na própria Metrópole, onde já existiam mulatos em fins do século XV. O humanista Clenardo sustentava em 1536 que “em Lisboa os escravos e escravas são mais que os portugueses”. exagero que serve de qualquer modo para enfatizar a quantidade de escravos -trazidos principalmente da África -que naquele tempo viviam na capital portuguesa. Damião de Gois, em 1541, calculava haver no país de 10 a 12 mil negros: cerca de dez anos mais tarde, eles já constituíam a quinta parte da população de Lisboa. Um estrangeiro que visitou Portugal em inícios do século XVIII atribuiu a cor trigueira dos naturais ao clima, mas também à mistura com os negros, muito ordinária no povo baixo. Cf. Sérgio Buarque de Holanda: Raízes do Brasil. Rio de janeiro, José Olympio Editora, 19. edição, 1987, p. 22-4. africano, indiano e… chinês: chinês em numerosos usos e costumes, em certos requintes da civilização material, em pormenores de arquitetura e artísticos; chinês enfim em muitas formas de pensar, viver, agir e sentir.

Com efeito, ao longo de quatro séculos, do segundo terço do século XVI até pelo menos o segundo quarto do século XIX (quando o país de repente e quase à força se converte ao Ocidente, afrancesando-se e se inglesando da noite para o dia, arrependido de ter permanecido por tanto tempo índio, africano e asiático e envergonhado de ter sido senão na epiderme, mentalmente vermelho, negro e amarelo antes de tentar ser branco), ponderável influência chinesa atingiu o Brasil, assumindo entre nós formas específicas e conotações inconfundíveis, que se traduziriam no devido tempo em hábitos, modos de viver e fazer que mesmo hoje longe estão de se terem esgotado, fundamente arraigados como se acham na alma nacional. E note-se que não estamos tratando aqui de chinoiseries ou chinesices, China de fantasia ou de mentira, invenção de europeus que também tivemos em dado momento, porém de autêntica influência chinesa sobre o Brasil Colonial ou já de tempos do Império: sob tal aspecto quer-nos parecer que o Brasil constitui caso único no mundo ocidental.

No período considerado, os homens de posses, cuja riqueza apoiava-se no braço escravo,2Já na História da província de Santa Cruz, publicada em 1576, dizia Pero de Magalhães Gandavo dos portugueses que habitavam no Brasil que: “a primeira cousa que pretendem adquirir, são escravos para nelles Ihes fazerem suas fazendas e si huma pessoa chega na terra a alcançar dous pares, ou meia duzia delles (ainda que outra cousa nem tenha de seu) logo tem remedio para poder honradamente sustentar sua família; porque hum lhe pesca e outro lhe caça, os outros lhe cultivão e grangeão suas roças e desta maneira nem fazem os homens despeza em mantimentos com seus escravos, nem com suas pessoas. Pois daqui se pode inferir quanto mais serão acrescentadas as fazendas daquelles que teverem duzentos, trezentos escravos, como ha muitos moradores na terra que nam tem menos desta conta”. Belo Horizonte, Itatiaia/Edusp, 1980, p. 93-4. distraíam sua indolência assistindo a brigas de galos, empinando, compenetrados, papagaios de papel ou queimando a qualquer pretexto fogos de artifícios que mandavam buscar do outro lado do mundo; muitos faziam questão de mostrar extravagantemente crescidas as unhas das mãos, para ficar bem claro aos olhos de todos que, como os mandarins,3Não têm razão os que sustentam ser de origem portuguesa o vocábulo mandarim, fazendo-o derivar do verbo mandar, quando na verdade veio do sãnscrito. Como ensina Gaspar Correa em Lendas da Índia (Lisboa, 1858, v, 2, p, 808) “manderyn quer dizer cavallelro e é nome estranho à língua portuguesa”. Cf, Joaquim Heliodoro Callado Crespo, Coisas da China (Costumes e Crenças), Lisboa, 1898, p. 81. não precisavam usá-las para ganhar a vida. Nas cidades e nos arrabaldes nobres, prelados e ricaços faziam-se conduzir em palanquins e serpentinas de forma e colorido estremo-orientais, ornados com motivos chinses de dragões e flores e carregados aos ombros de escravos em vistosos trajes. As vestimentas luxuosas que os membros das camadas ricas envergavam eram de seda chinesa multicoloridas, como chineses eram os guarda-sóis que os escravos distendiam sobre as cabeça dos senhores-de-engenho, produtores de açúcar e tabaco, para os proteger do clima. Os pais tinham direito de vida e até de morte sobre mulheres, filhos e escravos, todos aterrados sempre e a obediência e o respeito aos mais velhos, e por extensão à hierarquia e à autoridade, concretizavam-se, como na China, num código severo de mesuras, rapapés e ademanes, que não se dirigiam apenas às pessoas gradas presentes, mas também, na ausência delas, a símbolos emblemas que as representassem, hábito que entre nós se chamou salva-Paço, ou salva-Palácio.4Por volta de 1554 Fernão Mendes Pinto refere-se a costume parecido em sua Enformação de Alguas Cousas Acerca dos Custumes e Leys do Reino da China (em Peregrinação, Lisboa, Imprensa Nacional, 1983, p,741-2): “Todos os anos no dia q elRey naçeo per todos seus Reynos, e prouincias, fazem grandissimas festas, e chamão lhe o nome, q acima disse e põem nesta, e em cada cidade nos paços delRey hua cadeira pintada toda de vermelho, e a casa toda armada de peças muyto ricas vermelhas, e polo chão tãbem: cousa muyto pa uer; esta casa tem tres portas, e he custume dos capitaes das cidades entrarem pola do meo em andores muyto ricos, em q elles andão por mais nobresa q em cavallos: Mas neste dia assinalado não entrão senão por qualquer das outras duas portas, e não pola do meo, e entrão antão a pee os capitaees, e sem sõbreyro diante de si: aas quaees cadeyras hos capitaees fazem azumbahia de joelhos sete, ou oyto vezes; “. como se elRey estieua assentado nelIa, e acabando se vão pa suas casas”.

Numa sociedade tão marcada pela Ásia, era natural que as mulheres, do mesmo modo que as chinesas, passassem a existência enclausuradas em casa, onde não recebiam ninguém, e de onde só saíam, dizia-se, em três ocasiões: para o batizado, o casamento e o enterro. Seres subalternos, nem mesmo lhes era permitido, nos primeiros séculos, sentar-se à mesa com os maridos tendo de se satisfazer com os sobejos de suas refeições e de levar o alimento à boca com as mãos, já que facas e garfos só homens podiam usar. Casando-se meninas, aos 14, 13 e menos anos, com maridos que nunca tinham visto e portanto não podiam amar, maridos da mesma idade de seus pais e não raro de seus avós, enchiam-se cedo de filhos entanguidos, contando-se entre os raros prazeres que se podiam permitir o de poder aspirar-lhes a tenra epiderme em longos, delicados cheiros, beijando-os (como as chinesas) com o nariz; isso, antes de morrerem, velhas precoces de 25, 30 anos.

A morte era aliás presença habitual, e não só entre as mulheres e crianças, mesmo porque para mantê-la à distância só se contava com os recursos da velha medicina lusitana, fortemente eivada de elementos asiáticos; medicina de essência simbólica, mais próxima da simpatia ou do feitiço que da ciência, apoiando-se em receitas que nada ficam a dever às do antigo Ban Tsao chinês, com suas repugnantes combinações de ossos triturados, sangue, fezes humanas, gordura de cadáveres, minhocas, pó de corujas e de gatinhos recém-nascidos, moscas trituradas, trapos de camisa de defunto, baços de carneiro e outras, tão ou mais terríveis, que podem ser encontradas nos tratados setecentistas luso-brasileiros, como o Erário Mineral ou o Governo de Mineiros.

Em ocasiões festivas, ao cabo das refeições reforçadas de trinta e mais pratos ou cobertas podiam ser ouvidos retumbantes arrotos, prova de que os convivas tinham sabido apreciar as iguarias e assim, como os chinses demonstravam aos anfitriões sua satisfação. Atributo da beleza feminina que exercia sobre a imaginação dos homens irresistível fascínio eram os pés pequeninos, fetiche sobre o qual ainda escrevem babando, em fins do Oitocentos, Alencar, Machado ou Raimundo Correia. Enfim, como já desde o século XVI se jogara com cartas imitadas das chinesas, apostava-se no jogo das flores e, após os últimos anos do século XIX, no jogo do bicho, as mulheres escondiam-se por trás de seus leques (que manipulavam num código sutil de comunicação à distância) e não dispensavam ao sair diáfanas sombrinhas de seda de Tonquim. Quanto às crianças, quase no século XX ainda vestiam, para dormir, o velho timão ou quimão de chita ou fustão, estampado com dragões chineses em amarelo e vermelho.

Móveis, lacas, têxteis, marfins, brinquedos, jogos, enorme quantidade de porcelana (de que o Brasil foi dos primeiríssimos importadores ocidentais, ainda no século XVI) e até pinturas, tudo trazido através de Goa e em certos casos direto de Macau ou de outros portos da China, compunha o refinado emolduramento da nossa sociedade colonial, cenário que se completava com casas rurais de traçado regular, dotadas de telhados acachapados que se arrebitavam com elegância às quinas, como os pagodes, telhados sustentados aos beirais por cachorros em riquíssimo trabalho de marcenaria e cobertos de telhas envemizadas, para serem vistas di sotto in sù, ou zoomórficas, lembrando os dragões e outros animais reais ou míticos que os chineses punham no alto de suas casas como vigias contra os maus espíritos; sem falar nos jardins vagamente chineses, em que a natureza parecia ter sido reconstruída artificialmente.

Até as igrejas acusavam às vezes uma inconfundível presença chinesa: nos olhos amendoados de algum São Francisco ou São Bento, na confuciana serenidade de certos Cristos, na atitude e na postura impassíveis de certas imagens em marfim da Virgem com o Menino ou de Nossa Senhora do Rosário -Maria sempre tão parecida com a Guanyin budista, também ela Mãe da Misericórdia e Refúgio dos Aflitos…-, na forma e no corte de determinados altares, enfim nos leões funerários do Embu ou nos cães de Fo que estranhamente montam guarda junto à cruz, nos adros franciscanos de Recife e João Pessoa, Buda a se insinuar, sorrateiro, na própria casa de Cristo.

Admitido, porém; esse impacto sobre o Brasil de formas chinesas de pensar, viver, conviver, agir ou sentir, resta demonstrar de que maneira chegaram até nós e em que circunstâncias aqui se desenvolveram. A tal respeito convém antes de mais nada lembrar que os portugueses atingiram o Brasil ao mesmo tempo em que chegaram à China, com um intervalo de poucos anos, sendo portanto razoável admitir que experiências postas em prática lá e cá tenham sido de tempos em tempos cotejadas, com troca de informações e rodízio de funcionários e de mão-de-obra, até porque era muito reduzido o cabedal humano de que Portugal dispunha. Gilberto Freyre menciona a mobilidade espantosa do colonizador português, que se deslocava com inacreditável rapidez da metrópole às colônias ou nas colônias entre si, apesar das imensas distâncias e dos limitados meios .de locomoção disponíveis:

Os indivíduos de valor, guerreiros, administradores, técnicos, eram por sua vez deslocados pela política colonial de Lisboa como peças num taboleiro de gamão: da Ásia para a América do Sul ou daí para a África, conforme conveniência do momento. Uma mobilidade espantosa. O domínio imperial realizado por um número quase ridículo de europeus correndo de uma para outra das quatro partes do mundo então conhecido.5Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 9. edição, 1959, p. 10.

São inúmeros os exemplos de funcionários da alta administração colonial lusitana que antes de virem para o Brasil exerceram cargos na Índia, na China, Molucas, Timor e em outras paragens longínquas da Ásia Portuguesa. Assim é que vários dentre os donatários das Capitanias Hereditárias instituídas no começo da colonização, bem como seus capitães e lugares-tenentes, tinham-se lá destacado por bons serviços prestados à Coroa (serviços, aliás, de que as capitanias constituíam a recompensa), podendo ser mencionados entre eles Martim Afonso de Souza e Brás Cubas (que nos trouxe da China o monjolo), Vasco Fernandes Coutinho e Jorge Menezes seu locotenente a quem, narra Vicente do Salvador, “logo os gentios fizeram tão crua guerra que lhe queimaram os engenhos e fazendas e a ele lhe mataram a frechadas, sem lhe valer ter sido tão grande capitão e que na Índia, Maluco e outras partes tinha feito muita cavalaria”;6Frei Vicente do Salvador, História do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia/Edusp, 7. edição, 982, p. 108. Duarte Coelho, Francisco Pereira Coutinho, o célebre João de Barros, Aires da Cunha e muitos outros. Também o primeiro bispo do Brasil, Dom Pero Femandes Sardinha, foi vigário-geral de Goa antes de chegar à Bahia, em 1552.

Digno de destaque é o caso de Duarte Coelho, donatário da capitania de Pernambuco e fundador da cidade de Olinda, o qual em 1517 estava em Cantão, dos primeiros portugueses que pisaram no solo da China, mais tarde prestou serviços na Costa da Mina e na escolta das naus que retomavam da Índia e foi embaixador em França antes de vir, em 1534, tomar possessão de suas terras no Brasil. Mais de trinta anos após suas andanças pela China, seu nome era ainda ali lembrado, como o comprova este trecho de uma carta de novembro de 1555 remetida de Macau por Fernão Mendes Pinto:

Quando ueo o dia de São Johão vinte e quatro de yunho nos nos partimos pa a china onde neste ca minho auia q escreuer do q uimos e do q pasamos onde fomos a hua Ilha q se chama pulo champalo onde o pe. dise missa iunto de hua penedia onde estaua hua crus cauada na pedra e huas letras q dizião q auia trinta e dous annos serem feitas, e segdo o dito de algus escreveuas hu duarte coelho q esta no brazil.7Fernão Mendes Pinto, op. cit., Carta II, p. 735-6.

O rodízio de altos funcionários civis e militares, de um para o outro lado do gigantesco império ultramarino português, prosseguiu pelos séculos XVII e XVIII e adentrou o XIX: seria inútil, além de tedioso, especificar os numerosos deslocamentos que tiveram o Brasil como ponto de chegada, escala ou partida, tão frequentes eram eles; mas recordaremos alguns nomes, como Pedro Antonio de Noronha, Marquês de Angeja, que governou a Índia e foi, de 1714 a 1718, vice-rei do Brasil; Lourenço de Almeida, que partiu como soldado para a Índia em 1697, ali permanecendo até 1704, tornando-se mais tarde governador de Pernambuco (1715-1718) e de Minas Gerais (1721-1723); João da Maia da Gama, que lutou na Índia e no Golfo Pérsico entre 1692 e 1699, ano em que aportou à Bahia, para ser mais tarde governador da Paraíba (1708-1717) e do Maranhão e Grão-Pará (1722-1728); Francisco Antonio Veiga Cabral Câmara Pimentel, Visconde de Mirandela, que também governou a Índia de 1794 a 1807 e depois seria governador de Santa Catarina; e Bernardo José Maria da Silva Lorena, Conde de Sarzedas, Governador de São Paulo em 1787 e de Minas Gerais em 1797, vice-rei da Índia de 1808 a 1816, quando regressou ao Brasil, aqui falecendo dois anos mais tarde. Esclareça-se que, como Macau estava subordinada a Goa, governar a Índia implicava ao mesmo tempo administrar os territórios portugueses da China.

Também existiram casos inversos, de funcionários, comandantes militares ou de eclesiásticos que, nascidos no Brasil, dele partiram para prestar serviços no Extremo Oriente ou na Índia. Assim é que pertencem à história da China portuguesa Dom Alexandre da Silva Pedrosa Guimarães, nascido na Bahia e que se tornaria bispo de Macau entre 1772 e 1789, acumulando entre 1777 e 1778 suas funções com as de governador, e principalmente o maranhense Antonio de Albuquerque Coelho, filho de Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho, governador do Maranhão, e de certa Angela de Bairros, de ascendência branca, negra e ameríndia, nascido em Santa Cruz do Camutá (atual Cametá) em 1682 e falecido no Oriente por volta de 1745- militar em Goa (1700-1706) e Macau (1708-1716), capitão-general e governador de Macau em 1718 e 1719, governador e capitão-general do Reino de Pata junto a Mombaça em 1729 e dez anos mais tarde comandante da praça de Mormução, em Goa, protagonista de curiosa história de amor com a riquíssima órfã Maria de Moura.8Acerca de Antonio de Albuquerque Coelho consulte-se Charles R. Boxer, Fidalgos in the Far East 1550- 1770. Haia, Martinus Nijhoff, 1948.

Os constantes deslocamentos de administradores e de comandantes militares de um para o outro extremo do mundo colonial português não nos parecem contudo ter constituído fator tão importante para o ingresso e a difusão no Brasil de conceitos, práticas e costumes asiáticos e mais especificamente chineses, quanto os também frequentes deslocamentos de marinheiros e soldados entre a colônia sul-americana e a Ásia portuguesa. Engajados em naus da carreira da Índia embarcaram com efeito em Salvador, com destino à Ásia Oriental, pilotos e marujos que preenchiam os claros nas tripulações dizimadas por doenças, acidentes e ainda outras causas.9Entre as doenças mais comuns a bordo estava em primeiro lugar o escorbuto; depois, e em aproximada ordem decrescente, pneumonia, febre tifóide, tifo (“febre dos navios”), varíola, febre amarela (“febre do Sião”), disenteria, sífilis e tétano. Quedas dos mastros eram comuns, e não raros os incêndios. Para prevenir brigas e rixas entre os marinheiros era adotada uma disciplina brutal. Ambrósio Richshoffer, em seu Diário de um soldado da companhia das Índias Ocidentais (São Paulo, Ibrasa/MEC, 2. edição, 1978, p. 118), descreve tais castigos na frota holandesa do Atlântico Sul, castigos que pouco devem ter diferido dos aplicados em embarcações de outras bandeiras: “Quando um soldado ou marinheiro saca para outro da espada ou da faca, prega-se-lhe esta através da mão no mastro grande. Se ele quizer soltar-se tem que lascar a própria mão”. Também comuns a bordo devem ter sido as infestações por piolhos e outros parasitas, às quais se refere o mesmo Richshoffer, op. cit., p. 50: “A 27 faleceu nosso tambor, chamado Gerhard Loris, o qual pouco antes de morrer estava coberto de piolhos, que quase o devoravam. Apesar de o meterem, inteiramente nu, dentro de uma tina de água do mar, esfregarem-lhe fora a bicharia com uma vassoura e vestirem-lhe uma camisa limpa, logo encheu-se outra vez deles, e não só inchou extraordinariamente como ficou cego”. É Amaral Lapa quem nos esclarece:

Raríssimo era o caso de um navio desse roteiro que ao proejar para Salvador não apresentasse claros na tripulação e guarnição militar (…). A sinistra ceifa tinha os mais diferentes estímulos a bordo: o escorbuto, a sede, a inanição, as quedas e acidentes no mar, os surtos de agravação das endemias e até os motins, aquelas obrigando inclusive a renovação da botica dos barcos em Salvador (…). Mal equipados e remunerados, esbulhados pelos capitães, contendendo por pútridas rações de água bichosa, os homens do mar tinham a vida encurtada pelo intenso desgaste físico e mental. Vezes houve em que, na Bahia, tornou-se necessário substituir quase toda a tripulação de naus da Índia (…). Como o prosseguimento da viagem era condicionado, entre outras providências, pela necessidade de preenchimento desses claros, os brasileiros e portugueses radicados na Colônia americana passaram a ser, com freqüência, incorporados e reincorporados às armadas do Oriente. Incalculável número de mandados foram passados no Salvador, ou para lá enviados, a fim de atender a esses recrutamentos.10José Roberto do Amaral Lapa, A Bahia e a carreira da Índia. São Paulo, Companhia Editora Nacional/ Edusp, 1968, p. 188-9.

Se bem que fosse nas viagens de retorno que ocorressem as maiores baixas na tripulação, não se pense que desfalques pesados não sucedessem também nas de ida, como o exemplifica o caso da nau Nossa Senhora da Conceição, que arribou a Salvador, em julho de 1664, com muitos mortos e enfermos a bordo, incapaz de prosseguir viagem. Em tais ocasiões era preciso preencher o desfalque com gente sã, mesmo que sem experiência de longas travessias, e às vezes até sem experiência marítima alguma – coisa que aliás deve ter originado trágicas conseqüências, de resto encaradas com fatalismo, atribuídas que eram à vontade divina. Apelava-se então para voluntários, mas sobretudo para marinheiros de embarcações fundeadas no porto e não pertencentes à carreira da Índia. Esse último expediente consistia em requisitar, em cada barco, no mínimo um tripulante, que passava a integrar a tripulação da nau desfalcada, não sem protestos, claro, seus e dos seus capitães. Se ainda assim continuasse faltando gente, o jeito era tentar transformar em desajeitados marujos camponeses e vaqueiros, ou, em casos extremos, enfiar à força a bordo criminosos recolhidos a prisões ou a corja das ruas, coisa que, pelo menos no entender de um governador de Sergipe em 1674, tinha a dupla vantagem de “acudir a esta necessidade da nau da Índia [e] tirar essa Vila de gente vagabunda e perdida”.

Mas os desfalques a bordo não atingiam apenas marinheiros: também soldados, pois cada nau devia levar obrigatoriamente certo número deles, e todo tipo de mão-de-obra especializada: conclui-se assim que para as naus da carreira viram-se atraídos ou foram desviados soldados das guarnições locais e mais cirurgiões, barbeiros, capelães, boticários, tanoeiros, carpinteiros, cozinheiros, calafates etc., tudo com prejuízos para a Colônia, cuja escassa população não se podia permitir o luxo de abrir mão de seus ralos oficiais.

Muitas foram as ocasiões em que soldados do Brasil seguiram de Salvador com destino às mais remotas paragens do Império Ultramarino Português, a fim de reforçar guarnições regionais. Para a Ásia inclusive: em 1672, por exemplo, quando o governador da Bahia fez embarcar no galeão São Pedro de Rates, com destino à Índia, toda uma companhia de infantaria; ou em 1725, quando 42 praças baianos partiram na fragata Santo Antônio de Pádua para engrossar tropas no Oriente; ou ainda em 1748, ano em que se abriu na Bahia alistamento para 1.500 soldados que deveriam servir por 6 anos no Estado da Índia, ao termo dos quais era-lhes garantida a viagem de volta. Tudo isso serve para justificar a afirmativa de Amaral Lapa, de que em inúmeros chãos onde pisaram os pés portugueses o Brasil esteve diretamente presente.

Se é muito provável que a maior parte desses marinheiros, soldados, oficiais mecânicos e criminosos que deixaram a Bahia com destino à Ásia por lá ficaram – sem recursos para voltar, mortos na travessia marítima ou em combate -, é possível que outros tantos tenham logrado retornar, trazendo então experiências, observações e vivências que podem ter posto em circulação em nossa sociedade colonial. E nem eram só eles os que, procedentes da Índia ou da China, podem ter contribuído para a introdução no Brasil de modismos orientais: também incontáveis clandestinos e desertores, religiosos, enfermos de volta à Europa e que por aqui iam ficando – tal esse irmão jesuíta Charles de Belleville desembarcado em Salvador em 1708, alegadamente para ali morrer, mas que continuava vivo vinte anos depois -,11Charles de Belleville chegara enfermo da China, onde vivera dez anos, e possui um lugar na história da arte brasileira por ter sido arquiteto e pintor de atividade comprovada na Bahia. Na China adotara o nome de Wei Chia-Lu. O caso de Belleville é estudado em especial no capítulo 4 do presente livro. prisioneiros recambiados para Lisboa e aventureiros de todo tipo, muitos dos quais iam-se deixando ficar em Salvador ou se embrenhavam sertão adentro para fugir às autoridades. Também aqui cedamos a palavra a Amaral Lapa:

Pessoas das mais diferentes condições sociais e pelos mais diferentes motivos procuraram utilizar-se das naus da Índia, visando atingir o Brasil. Famílias endividadas, foragidos da Inquisição, padres pertencentes à Congregação da Índia e cristãos-novos, valiam-se ou tentaram valer-se dessas oportunidades de viagem. A febre do ouro, as fantásticas notícias que corriam a respeito do Brasil, tanto na Europa, onde as oportunidades minguavam, quanto no Oriente, onde a decadência não oferecia esperanças, atraíam esses homens (…).

Muitos soldados das guarnições portuguesas do Oriente embarcaram para o Brasil, sem licença dos superiores, mas quase sempre sob as vistas condescentes de oficiais das naus. Acabaram ficando por aqui, ou procuravam, mais tarde, ir para o Reino.12Amaral Lapa, op. cit., p. 225.

Talvez tenha sido um desses imigrantes atraídos pelo ouro de Minas Gerais, onde já se encontrava antes de 1720, esse pintor Jacinto Ribeiro, natural de Goa, ativo por muitos anos na região aurífera, na decoração de igrejas e capelas.

Patenteado assim que não poucos brasileiros e portugueses do Brasil estiveram, durante o período colonial, em possessões portuguesas da Ásia – como marinheiros, soldados, oficiais mecânicos ou .sob outras condições -, ali tomando contato demorado com praxes, técnicas e hábitos que, os que lograram tornar ao Brasil, podem bem ter feito circular entre nós, cabe agora inversamente indagar: e marinheiros e embarcadiços chineses, indianos e de outras origens, terão acaso estado no Brasil? É muito provável, não só a bordo de naus portuguesas como também integrando as tripulações de navios ingleses, franceses, holandeses e de outras nacionalidades que por aqui passavam, autorizados em alguns casos, mas quase sempre burlando a vigilância das autoridades portuárias ou as subornando, violando os códigos e posturas que proibiam qualquer tipo de relacionamento entre estrangeiros e os naturais da terra.

A probabilidade dessa presença asiática no Brasil aumenta, quando se sabe que, de modo geral, os navios das diferentes Companhias das Índias Orientais que costumavam aportar ao nosso país, em seu regresso à Europa, eram majoritariamente tocados por marinheiros asiáticos – chineses, árabes, indianos, malaios, cingaleses, javaneses etc. alistados para preencherem as baixas ocorridas na tripulação durante a viagem de ida. Os ingleses davam preferência aos lascars indianos, disciplinados e operosos, embora assustadiços e pouco resistentes ao mar, “morrendo como moscas” segundo antigo cronista; mas empregavam também muitos marinheiros chineses e malaios. As demais frotas priorizavam a marinharia chinesa, árabe e malaia, raças afeitas ao mar e que desde remotas eras tinham dado prova de grande competência como navegadores.13Quase cem anos antes de Colombo e de Vasco da Gama, entre 1405 e 1433, em pleno reinado do imperador Yongle, o almirante-eunuco Zheng He, à frente de 28 mil homens e dispondo de uma frota de trezentos grandes juncos (bao chuan, “navios do tesouro”), cada um medindo 120 metros de comprimento e junto aos quais as caravelas espanholas e portuguesas teriam parecido brinquedos de criança, realizou sete grandes viagens pelos Mares da China e pelo Oceano Índico, conquistando Ceilão e Sumatra, atingindo Borneo, Celebes, Taiwan, Filipinas, Cambódia, Singapura, Timor, Java e possivelmente a Austrália, chegando ao Mar Vermelho, Pérsia e Arábia, ladeando toda a costa oriental da África até Madagascar e só se detendo ante a malograda tentativa de conquistar o Japão. A lembrança dos desembarques chineses na África ainda sobrevivia na memória dos mais velhos, quando décadas mais tarde ali aportaram os portugueses. Acerca do poderio naval da China sob Zheng He, consulte-se Louise Levathes: When China Ruled the Seas. Nova York, Simon & Schuster, 1994. Só para citar um exemplo, diremos que em 1792 o pessoal de bordo da frota holandesa no Cabo da Boa Esperança, num total de 1.417 indivíduos, compunha-se de apenas 579 europeus de diversas origens e de 504 chineses, 253 árabes e 101 malaios.14Cf. R. Picard, J. P. Kerneis e Y. Bruneau, Les Compagnies des Indes -Route de la Porcelaine. Paris, Arthaud, 1966, p. 187.

Não será disparatado chegar-se à conclusão de que centenas, talvez milhares de chineses e de outros asiáticos, embarcados em naus que faziam o trajeto entre a Ásia Oriental, o Brasil e a Europa, pisaram, no decurso de séculos, terras brasileiras. E se não nos ficaram narrativas ou descrições dessas viagens, foi talvez porque não se imaginou que a experiência de rudes marinheiros iletrados fosse capaz de interessar a alguém. Aliás, nem se pode afirmar com segurança que tais descrições inexistam, antes de que acuradas pesquisas venham a ser realizadas em arquivos da China e da Índia. Mesmo porque uma dessas narrativas foi há pouco revelada ao Ocidente por André Levy: publicou-a em 1821 o geógrafo e historiador chinês Li Zhaolu, o qual recolhera o relato de um veterano marinheiro, Xie Qinggao (1765-1821).15André Levy, Novas cartas edificantes e curiosas do Extremo Ocidente por viajantes chineses na Belle Époque. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 40. Xie Qinggao, que aos 32 anos cegou e teve de abandonar a carreira do mar, afirma ter percorrido entre 1782 e 1796 os sete mares a bordo de embarcações portuguesas, referindo-se mais demoradamente a Portugal, mas também ao Brasil.16Como Xie Qinggao cegara em 1796, não se compreende como possa referir-se a eventos posteriores, como a partida da Família Real Portuguesa para o Brasil, em 1808, a não ser que sua narrativa tenha sido ampliada e atualizada por informações prestadas por outros viajantes. Cf. Levy, op. cit. , p. 42. Outras narrativas do gênero da de Xie Qinggao devem, estamos certos, existir.

Idéias e costumes da China podem ter-nos chegado também através de escravos chineses, de uns poucos dos quais sabe-se da presença no Brasil de começos do Setecentos.17Cf. Charles R. Boxer, A idade de ouro do Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1963, p. 161. Mas não deve ter sido através desses raros infelizes que a influência chinesa nos atingiu, mesmo porque escravos chineses (e também japoneses) já existiam aos montes em Lisboa por volta de 1578, quando Filippo Sassetti visitou a cidade,18Sassetti viveu em Portugal de 1578 a 1583, e se refere numa série de cartas pormenores da vida portuguesa da época. Tais cartas só foram publicadas em Florença em 1855, achando-se o trecho que nos interessa mais de perto às p. 125-7. apenas suplantados em número pelos africanos. Parece aliás que aos últimos cabia o trabalho pesado, ficando reservadas aos chins tarefas e funções mais amenas, inclusive a de em certos casos secretariar autoridades civis, religiosas e militares.

Muitos desses escravos chineses de Lisboa tinham sido sequestrados ainda em criança em Macau e vendidos (não raro pelos próprios pais) aos lusitanos. O célebre jesuíta padre Matteo Ricci estava a par do comércio de escravos chineses na Europa, já que ele mesmo os vira em Lisboa, onde também se encontrava em 1578; nunca porém o condenou formalmente, até porque também ele possuía escravos, só que negros africanos. Numa ocasião comentou inclusive que o fato de tais chins reduzidos à escravidão terem sido submetidos à força ao batismo podia bem ser a maneira que Deus encontrara para os conduzir -por linhas tortíssimas, já se vê -à salvação eterna. É verdade que numa outra passagem dos seus escritos manifestou o padre seu repúdio aos pais que vendiam os filhos por algumas moedas -“menos do que se pagaria por um porco ou um cavalo velho” -, entregando-os a desnaturados que os efeminavam e os ensinavam a tocar música, cantar e dançar -“e, então, vestidos galantemente e maquiados como mulheres, esses miseráveis homens são iniciados nesse terrível vício”; 19Jonathan D. Spence, O palácio da memória de Matteo Ricci. São Paulo, Companhia das Letras, 1986, p. 224 e segs. só que aí o que perturbava Ricci era não tanto a escravidão quanto o homossexualismo.

A venda de crianças chinesas aos portugueses continuaria por dois séculos, a despeito de leis, tanto chinesas quanto portuguesas, que de tempos em tempos tentavam impedi-la com severas penas. Assim, em 1595 o vice-rei de Goa impôs uma pesada multa a qualquer português que comprasse ou vendesse chineses, e por lei de 19 de fevereiro de 1624 o rei Felipe IV declarava que “os chins não podiam nem deviam ser escravos”, determinando o mesmo texto legal que “não haja mais escravidão de chins nem ainda temporal de certos anos; antes, pelo contrário, todos os referidos chins de um e outro sexo sejam livres”. Muitas décadas mais tarde, em 1700, permanecia, porém, o hábito de os portugueses comprarem crianças chinesas em Macau para as transformarem, lá mesmo ou em Portugal, em atai e amui, criadinhos e criadinhas, mas também, suspeitavam os chineses, para lhes arrancarem e triturarem os olhos, a fim de com o pó assim obtido prepararem poções e mezinhas que a terrível medicina da época exigia! Em 1717 o rei dom João V ordenava ao vice-rei da Índia que nenhum navio português transportasse mui chais (meninas de tenra idade) para fora de Macau, tendo-lhe ponderado em contrapartida dom Vasco Fernandes César de Menezes que, em pelo menos certos casos, se a venda des- sas criancinhas não fosse permitida, seus pais simplesmente as matariam. Trinta anos depois, em 1747, era a vez de frei Hilário de Santa Rosa, bispo de Macau, queixar-se ao mesmo dom João V de que na cidade eram mantidos em cativeiro muitos naturais de Timor, e bem assim

chinas, suas naturais, comprando-as em pequenas por limitado preço (dizem que para as fazer cristãs) e depois de batizadas e adultas as cativam e reputam suas escravas por 40 anos, sem lei que permita, comprando-as, vendendo-as e dando-lhes (ainda com ferros) como escravos, bárbaros castigos.

Em 1744 era o imperador Qianlong quem ordenava que nenhum chinês ou europeu de Macau vendesse filhos e filhas, proibição reiterada em 1750 pelo vice-rei de Cantão. Como continuassem ainda assim as vendas de crianças, em 1755 de novo dom Manuel Mendes dos Reis, bispo de Macau, solicitava ao novo rei de Portugal, dom José I, providências que coibissem o abuso. Só em 1759, contudo, a questão seria solucionada de vez.

Já por aí se vê que devem ter sido numerosos os escravos chineses que tomaram o caminho de Lisboa -e por extensão o do Brasil -, onde podem ter contribuído de modo marcante para a disseminação de seus usos e costumes nacionais. Quanto às condições em que viviam os escravos chineses e também africanos em Macau (e do mesmo modo decerto em Lisboa), escreveu no século XVII o letrado chinês Ch’u Ta-Chun que os cães eram mais bem tratados, repetindo um dito da época: É preferível ser cachorro do que um escravo-diabo(kuai-mou, “escravo do diabo”, diabos sendo, logicamente, os portugueses).20Padre Manuel Teixeira, Macau no século XVIII. Macau, Instituto Nacional de Macau, 1984, p. 13, 174, 407, 443, 480-2 e 491-2.

Também os dois ou três milheiros de trabalhadores chineses entrados no Brasil no decurso do século XIX – primeiro por iniciativa do conde de Linhares, que trouxe uns trezentos deles de Macau em 1814 para dar início ao cultivo do chá no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, e depois, na malograda tentativa de se substituir o braço negro escravo pelo amarelo livre – de algum modo podem ter contribuído para influenciar, com os seus, os usos e costumes locais. Sobretudo no próprio Rio de Janeiro, onde quase todos se fixaram, ocupando a parte da cidade localizada entre o Morro do Castelo e o mar, ao longo da Rua da Misericórdia, onde era o Beco dos Ferreiros.21Vivaldo Coaracy, Memórias da cidade do Rio de Janeiro. Belo Horizonte, Itatiaia/Edusp, 3. edição, 1988, p. 342: “Em época bem mais recente, foi o Beco dos Ferreiros o bairro chinês da cidade. Nos vetustos sobrados que o margeiam comprimia-se densa colônia de chins”.

Não se diga que dois ou três mil chineses era muito pouco para, ao longo de um século, marcar presença num país de características tão diferentes do seu; porque não se pode deixar de levar na devida conta que, ao desembarcar no Rio, na segunda década do século XIX, aqueles cerca de trezentos indivíduos passaram a representar parcela nada desprezível da população total da cidade, que então não chegaria a setenta mil habitantes, dos quais os brancos constituíam pequena parcela. Sua marca pode talvez ter sido sutil, porém suficientemente forte para repercutir por exemplo em certos hábitos de cozinha e medicinais, no modo como os peixeiros passaram a oferecer sua mercadoria, em dois cestos pendentes através de cordas de um travesso conduzido ao ombro,22Coaracy, op. cit., p. 61: “Sobre a Praça das Marinhas davam as bancas de peixe em que abundavam pescados e mariscos. Aí vinham se abastecer os peixeiros ambulantes, que haviam apreendido com os chins, que tinham aqui exercido o ofício, a transportar os cestos redondos de mercadoria pendurados as duas pontas de uma verga carregada ao ombro”. no artesanato, ao qual muitos se dedicariam, de leques, fogos de artifício e pequeninas bugigangas. E que os chineses de fato marcaram, no Rio de Janeiro pelo menos, sua presença cultural, comprovam-no a curiosidade e o interesse que suscitaram nos viajantes europeus que, de passagem pela cidade, a eles se referiram, como Rugendas, Eberle, Mawe, Maria Graham, Maximiliano e tantos outros.

Até aqui temos considerado apenas a possibilidade de influências chinesas a nós chegadas pela atuação direta de indivíduos – não só altos funcionários civis e militares destacados para o Brasil após terem servido na Ásia, marinheiros da carreira da Índia ou nela engajados por força das circunstâncias, soldados enviados como reforço para guarnições asiáticas, missionários de regresso à Europa, enfermos recambiados, fugitivos da Justiça ou da Inquisição, oficiais mecânicos, desertores, aventureiros em busca da fortuna, bandidos, sentenciados, até artistas, todos tendo em comum o haver pisado terras portuguesas da Ásia Oriental, e por outro lado marinheiros e embarcadiços, escravos e pobres culis23Culi parece-nos grafia melhor do que a forma correta, cule: o vocábulo, que para alguns é de origem indiana, pode ser derivado do chinês ku, dor, sofrimento, mais li, força. Culi significaria por conseguinte força ou trabalho do sofrimento. chineses, aqui desembarcados desde quem sabe os primeiros anos da colonização; cumpre agora que levemos em conta também influências determinadas ou avivadas pela introdução em nosso país, no período colonial e até às décadas iniciais do Oitocentos, de produtos chineses, e isso porque, como Gilberto Freyre, acreditamos que dificilmente se admite que um ser social e cultural tão cercado de “objetos materiais” do Oriente, como o brasileiro – ou o português do Brasil – da época colonial e dos primeiros anos do século XIX não sofresse influências orientais nos seus modos de pensar e de sentir. Sofreu-as e foram influências que principalmente reforçaram no sexo, na classe e na raça dominantes, ou senhoris, atitudes patriarcais de superioridade sobre os demais elementos da sociedade.24Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos. Rio de janeiro, José Olympio Editora, 7. edição, v. 2, p. 476. Nem todos parecem, contudo, ter concordado com esse autor – e entre os que dele discordam mencione-se Afonso Arinos de Melo Franco, o qual em Desenvolvimento da civilização material do Brasil. Rio de Janeiro, Sphan, 1944, p. 14, ao tratar das quatro forças que colaboraram para a conformação da nação portuguesa -a moura, a negra, a amarela e a judia -, assim escreveu: “O elemento mouro e o chinês ficaram pela rama, visíveis em aspectos complementares de nossa vida, nalgum telhado em forma de pagode, nalguma janela ciumenta de sarrafos trançados, no monjolo, na serpentina (veículo) e em pouco mais”.

Mercadorias chinesas – fazendas, para utilizar a terminologia usada em tempos coloniais nos mapas ou nas relações de carga das embarcações – eram já relativamente numerosas no Brasil da segunda metade do século XVI, como nos informam Fernão Cardim e outros autores da época.25Cardim, em sua “Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica”, in: Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia/Edusp, 1980, p. 150, afirma ter sido acolhido, na noite de 3 de janeiro de 1584, “em casa de um sacerdote devoto da Companhia, que depois entrou nela”, onde foi servido “com todo bom serviço de porcelana da Índia” (isto é, da China). À p. 157 fala de “ricas camas e leitos de seda”, à p. 161 de “leitos de damasco carmesim, franjados de ouro, e ricas colchas da Índia”, e à p. 164 explica que os homens da terra “vestem-se, e as mulheres e os filhos de toda sorte de veludos, damascos e outras sedas, e nisto têm grandes excessos. (…) São muito dados a festas. Casando-se uma moça honrada com um viannez, que são os principais da terra, os parentes e amigos se vestiram uns de veludo carmesim, outros de verde, e outros de damasco e outras sedas de várias cores, e os guiões e selas dos cavalos eram das mesmas sedas que iam vestidos”. Durante o século XVII e de modo especial no século XVIII elas se tornarão abundantes, e assim continuariam ainda no começo do século XIX, quando cedem vez no gosto do público aos produtos ingleses, franceses e de outras origens ocidentais.

Dentre todas as mercadorias que ao longo de mais de três séculos o Brasil recebeu da China, a porcelana foi decerto a mais apreciada – hé adroga que mais facilmente se vende nesta terra, como se lê num manuscrito do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa relativo à carga trazida da Índia na nau São José, aportada a Salvador em maio de 1758.26Cf. Amaral Lapa, op. cit., p. 275. Tal predileção dos brasileiros e luso-brasileiros explica o enorme número de porcelanas que recebemos, e que certos cálculos chegam a orçar em 10 milhões de peças.27Cf. Picard et alii, op. cit., p. 33. Mas em seu livro A porcelana chinesa e os brasões do império. Barcelos, Civilização, 1987, XXIII. Nuno de Castro reputa tal cifra muito modesta, afirmando. “No total de viagens efetuadas desde o final do século XV até meados do século XIX, os portugueses terão transportado de 15 a 18 milhões de peças de porcelana chinesa, incluindo brasonadas.” Mas também outros produtos chineses desfrutariam de grande aceitação no Brasil, mesmo porque – como escreve o anônimo autor de uma Description de la Ville de Lisbonne aparecida em 1730 em Paris, “as mercadorias da China vendem-se mais vantajosamente no Brasil que em qualquer outro lugar”; entre tais produtos citem-se chá, arroz, fogos de artifício, têxteis, sedas, objetos de adorno, sapatos, leques, chapéus-de-sol, sombrinhas, caixas, colchas, tabuleiros, pára-ventos, papel, brinquedos, costureiras e ainda outros, que constituem presença constante nos carregamentos das naus.

Para se ter idéia do volume de mercadorias chinesas até nós desembarcadas através de Salvador entre 1610 e 1799, basta dizer que, de acordo com levantamento feito por Amaral Lapa e certamente passível de ampliação, as naus da Carreira da Índia que arribaram àquele porto, procedentes de Goa, foram muito mais numerosas do que as que vinham de Lisboa: 45 naus contra 16, no século XVII, e 99 contra 37, no século XVIII.28Amaral Lapa, op. cit., Quadros 2 e 3, p. 331-43. Só que as fazendas do Oriente não nos eram trazidas apenas pelas naus da Carreira, mas também por navios estrangeiros que de tempos em tempos arribavam a Salvador, Recife, Rio de Janeiro e talvez outros portos do Brasil, vindos diretamente da China, neles vendendo (ou trocando por açúcar, tabaco, ouro e outros produtos da terra) sua preciosa carga extremo-oriental.

Quanto a naus lusitanas procedentes diretamente de Macau, sempre foram extremamente raras em portos brasileiros, de vez que a Coroa por muito tempo impediu com rigor qualquer relacionamento comercial entre as duas colônias.

Para concluir, uma advertência: ao proceder ao estudo das influências, ecos e permanências culturais da China em nosso país há que se tomar cuidado para que nele não se inclua também aquilo que, a despeito das aparências, pode não ser senão mera casualidade, coincidência epidérmica motivada por semelhanças existentes na forma e no sistema de administração e governo, na maneira de se estruturar a família e a sociedade e na organização da economia e do trabalho, todos essencialmente patriarcais, que predominaram na China ao longo de milênios, e no Brasil desde o descobrimento até pelo menos fins do Oitocentos, visto como ainda tínhamos escravos em 1888 e seríamos um Império até o ano seguinte. O fato é que se alguns de nossos usos e costumes, modos de viver e conviver acusam fortes afinidades com os de lá, isso pode muito bem corresponder à circunstância de que na China, como no Brasil, prevaleceram estruturas econômicas e condições políticas e sociais parecidas;29Um exemplo disso encontramos no respeito aos pais e de modo amplo aos mais velhos, quase tão forte no Brasil Colonial e Imperial quanto na velha China, mas que nada tem a ver com a noção confuciana de piedade filial. Às p. 223 e 224 de seu livro A China e os chins (Montevideo, 1888), o diplomata brasileiro Henrique C. R. Lisboa trata da piedade filial, hiao c’hun, e explica: “Tanto ofende a piedade filial quem desconsidera o pai como o que deita ao chão um pedaço de papel em que se acham gravados os caracteres da língua escrita, ensinados pelo pai da nação chinesa, o imperador Fo-Hi. Nem é menos irreverente filho o ladrão vulgar, do que aquele que deixa de concorrer às festividades em honra dos antepassados.” de igual maneira, certos produtos de nossa civilização podem revelar parentesco a um primeiro exame inexplicável com congêneres chineses, por corresponderem a duas sociedades afastadas entre si por poderosos fatores de natureza geográfica, histórica e cultural, porém inesperadamente próximas por obedecerem a um mesmo sistema patriarcal.

Exemplo de que às vésperas quase de nossa independência política ainda compartilhávamos com os chins a mesma mentalidade, fornece-o um dos espíritos mais cultos e esclarecidos de seu tempo, José da Silva Lisboa, num texto que, embora escrito 15 anos após a Revolução Francesa, poderia ter sido firmado sem titubeios por qualquer alto dignitário chinês dos tempos da Dinastia Ming e até de antes:

o primeiro princípio da economia política é que o soberano de cada nação deve considerar-se como chefe ou cabeça de uma vasta família, e consequentemente amparar a todos que nela estão, como seus filhos e cooperadores da geral felicidade. (…) Quanto mais o governo civil se aproxima a este caráter paternal e forceja por realizar essa ficção generosa e filantrópica, tanto ele é mais justo e poderoso, sendo então a obediência a mais voluntária e cordial, e a satisfação dos povos a mais sincera e definida.30José da Silva Lisboa, Princípios de economia política para servirem de introdução à tentativa econômica do autor dos princípios de direito mercantil. Lisboa, 1804, p. 39 e 42, cf. Sergio Buarque de Holanda, op. cit., p. 53.

Não é preciso ser-se versado em coisas da China para detectar, nesse caráter paternal, nesse soberano que deve ser como o chefe ou cabeça de uma vasta família, e cuja missão será amparar os cidadãos, considerados filhos e cooperadores da felicidade geral (filhos que lhe devem em contrapartida obediência voluntária e cordial) inequívocos matizes confucianos, praticamente as mesmas idéias que circulavam na China havia milênios.

Setenta e cinco anos mais tarde era a vez de Joaquim Nabuco, discursando na Câmara, comparar os dois países, governados por imperadores que eram, ao mesmo tempo, patricarcas:

…ambos esses países são dois dos maiores impérios do mundo; ambos têm à sua frente um governo patriarcal; em ambos o Imperador é, como se diz na linguagem oficial da China, o pai e a mãe do povo; ambos têm os seus mandarins, a sua organização especial.31Cf. Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, v. 2, p. 478, nota 15 da edição citada.

Mais cinquenta se passariam desde a fala de Nabuco, e eis que de novo nos deparamos, já em pleno século XX, com outro paralelo entre o Brasil e a China, esboçado por Vivaldo Coaracy no capítulo .’O Modelo Chinês” de seu livro O caso de São Paulo, ao dialogar com certo personagem real ou imaginário Li Tse-Wang, “filósofo que, por motivos só dele sabidos, aportou um dia às plagas da Guanabara e por aqui ficou… chefe tacitamente eleito duma pequena colônia que fabrica quinquilharias para as lojas da rua do Ouvidor e adjacências, que as vendem como importação direta do oriente extremo”. Pois esse personagem (ou Vivaldo Coaracy por trás dele) tece, a respeito da Revolução de 1930, curiosas considerações, das quais extraímos algumas passagens:

Se a curiosidade insaciável do meu amigo distrai-se às vezes lendo as notícias que aqui chegam do Oriente, há de talvez ter visto que a minha terra anda agora a divertir-se com uma daquelas agitações periódicas que no correr dos séculos, de vez em quando nós nos permitimos, para quebrar a monotonia da existência. Temos um exército em cada província, generais do Norte, generais do Sul, generais do Leste. Todos mandam, ninguém obedece e reina a confusão entre as províncias dissociadas do Celeste Império. Há quem suspire pela volta ao regime primitivo; há quem proclame a excelência do Comunismo (…). Vocês também iniciaram aqui o regime da confusão, estão criando exércitos em cada província, com o nome de legiões. Cada governador faz o que entende. Vocês também têm um general do Norte e vários generais do Sul. E o Norte está independente do Sul. Também aqui todos querem mandar e ninguém pretende obedecer. Também aqui, como na velha China, dissociam-se as províncias e reina a anarquia, tanto nos espíritos como na administração. Há quem suspire pela volta ao regime primitivo; há quem proclame as excelências do Comunismo… (…). Vocês se esquecem de que nós podemos, de longe em longe, nos entregar à fantasia dessas orgias, porque o nosso organismo dispõe da robustez adulta de uma civilização de alguns milhares de anos. Toda essa agitação confusa na China se desenvolve à superfície, sobre a base sólida da integridade da raça, sobre os alicerces cimentados pelos séculos de uma tradição inquebrantável. Vocês como podem querer arremedar-nos, quando Ihes faltam esses requisitos de resistência? …32Vivaldo Coaracy, O Caso de São Paulo. São Paulo, Liga de Defesa Paulista, 1931, p. 79-85.

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Footnote

  • 1
    É conhecido o papel de destaque desempenhado pelo elemento semita, tanto árabe quanto judeu, na plasmação do homem português: menos sabido, mas também importante é o do elemento africano, já numeroso em Portugal antes de o Brasil ser descoberto. Na verdade, o processo de miscigenação entre lusos e africanos não teve início no Brasil, e sim na própria Metrópole, onde já existiam mulatos em fins do século XV. O humanista Clenardo sustentava em 1536 que “em Lisboa os escravos e escravas são mais que os portugueses”. exagero que serve de qualquer modo para enfatizar a quantidade de escravos -trazidos principalmente da África -que naquele tempo viviam na capital portuguesa. Damião de Gois, em 1541, calculava haver no país de 10 a 12 mil negros: cerca de dez anos mais tarde, eles já constituíam a quinta parte da população de Lisboa. Um estrangeiro que visitou Portugal em inícios do século XVIII atribuiu a cor trigueira dos naturais ao clima, mas também à mistura com os negros, muito ordinária no povo baixo. Cf. Sérgio Buarque de Holanda: Raízes do Brasil. Rio de janeiro, José Olympio Editora, 19. edição, 1987, p. 22-4.
  • 2
    Já na História da província de Santa Cruz, publicada em 1576, dizia Pero de Magalhães Gandavo dos portugueses que habitavam no Brasil que: “a primeira cousa que pretendem adquirir, são escravos para nelles Ihes fazerem suas fazendas e si huma pessoa chega na terra a alcançar dous pares, ou meia duzia delles (ainda que outra cousa nem tenha de seu) logo tem remedio para poder honradamente sustentar sua família; porque hum lhe pesca e outro lhe caça, os outros lhe cultivão e grangeão suas roças e desta maneira nem fazem os homens despeza em mantimentos com seus escravos, nem com suas pessoas. Pois daqui se pode inferir quanto mais serão acrescentadas as fazendas daquelles que teverem duzentos, trezentos escravos, como ha muitos moradores na terra que nam tem menos desta conta”. Belo Horizonte, Itatiaia/Edusp, 1980, p. 93-4.
  • 3
    Não têm razão os que sustentam ser de origem portuguesa o vocábulo mandarim, fazendo-o derivar do verbo mandar, quando na verdade veio do sãnscrito. Como ensina Gaspar Correa em Lendas da Índia (Lisboa, 1858, v, 2, p, 808) “manderyn quer dizer cavallelro e é nome estranho à língua portuguesa”. Cf, Joaquim Heliodoro Callado Crespo, Coisas da China (Costumes e Crenças), Lisboa, 1898, p. 81.
  • 4
    Por volta de 1554 Fernão Mendes Pinto refere-se a costume parecido em sua Enformação de Alguas Cousas Acerca dos Custumes e Leys do Reino da China (em Peregrinação, Lisboa, Imprensa Nacional, 1983, p,741-2): “Todos os anos no dia q elRey naçeo per todos seus Reynos, e prouincias, fazem grandissimas festas, e chamão lhe o nome, q acima disse e põem nesta, e em cada cidade nos paços delRey hua cadeira pintada toda de vermelho, e a casa toda armada de peças muyto ricas vermelhas, e polo chão tãbem: cousa muyto pa uer; esta casa tem tres portas, e he custume dos capitaes das cidades entrarem pola do meo em andores muyto ricos, em q elles andão por mais nobresa q em cavallos: Mas neste dia assinalado não entrão senão por qualquer das outras duas portas, e não pola do meo, e entrão antão a pee os capitaees, e sem sõbreyro diante de si: aas quaees cadeyras hos capitaees fazem azumbahia de joelhos sete, ou oyto vezes; “. como se elRey estieua assentado nelIa, e acabando se vão pa suas casas”.
  • 5
    Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 9. edição, 1959, p. 10.
  • 6
    Frei Vicente do Salvador, História do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia/Edusp, 7. edição, 982, p. 108.
  • 7
    Fernão Mendes Pinto, op. cit., Carta II, p. 735-6.
  • 8
    Acerca de Antonio de Albuquerque Coelho consulte-se Charles R. Boxer, Fidalgos in the Far East 1550- 1770. Haia, Martinus Nijhoff, 1948.
  • 9
    Entre as doenças mais comuns a bordo estava em primeiro lugar o escorbuto; depois, e em aproximada ordem decrescente, pneumonia, febre tifóide, tifo (“febre dos navios”), varíola, febre amarela (“febre do Sião”), disenteria, sífilis e tétano. Quedas dos mastros eram comuns, e não raros os incêndios. Para prevenir brigas e rixas entre os marinheiros era adotada uma disciplina brutal. Ambrósio Richshoffer, em seu Diário de um soldado da companhia das Índias Ocidentais (São Paulo, Ibrasa/MEC, 2. edição, 1978, p. 118), descreve tais castigos na frota holandesa do Atlântico Sul, castigos que pouco devem ter diferido dos aplicados em embarcações de outras bandeiras: “Quando um soldado ou marinheiro saca para outro da espada ou da faca, prega-se-lhe esta através da mão no mastro grande. Se ele quizer soltar-se tem que lascar a própria mão”. Também comuns a bordo devem ter sido as infestações por piolhos e outros parasitas, às quais se refere o mesmo Richshoffer, op. cit., p. 50: “A 27 faleceu nosso tambor, chamado Gerhard Loris, o qual pouco antes de morrer estava coberto de piolhos, que quase o devoravam. Apesar de o meterem, inteiramente nu, dentro de uma tina de água do mar, esfregarem-lhe fora a bicharia com uma vassoura e vestirem-lhe uma camisa limpa, logo encheu-se outra vez deles, e não só inchou extraordinariamente como ficou cego”.
  • 10
    José Roberto do Amaral Lapa, A Bahia e a carreira da Índia. São Paulo, Companhia Editora Nacional/ Edusp, 1968, p. 188-9.
  • 11
    Charles de Belleville chegara enfermo da China, onde vivera dez anos, e possui um lugar na história da arte brasileira por ter sido arquiteto e pintor de atividade comprovada na Bahia. Na China adotara o nome de Wei Chia-Lu. O caso de Belleville é estudado em especial no capítulo 4 do presente livro.
  • 12
    Amaral Lapa, op. cit., p. 225.
  • 13
    Quase cem anos antes de Colombo e de Vasco da Gama, entre 1405 e 1433, em pleno reinado do imperador Yongle, o almirante-eunuco Zheng He, à frente de 28 mil homens e dispondo de uma frota de trezentos grandes juncos (bao chuan, “navios do tesouro”), cada um medindo 120 metros de comprimento e junto aos quais as caravelas espanholas e portuguesas teriam parecido brinquedos de criança, realizou sete grandes viagens pelos Mares da China e pelo Oceano Índico, conquistando Ceilão e Sumatra, atingindo Borneo, Celebes, Taiwan, Filipinas, Cambódia, Singapura, Timor, Java e possivelmente a Austrália, chegando ao Mar Vermelho, Pérsia e Arábia, ladeando toda a costa oriental da África até Madagascar e só se detendo ante a malograda tentativa de conquistar o Japão. A lembrança dos desembarques chineses na África ainda sobrevivia na memória dos mais velhos, quando décadas mais tarde ali aportaram os portugueses. Acerca do poderio naval da China sob Zheng He, consulte-se Louise Levathes: When China Ruled the Seas. Nova York, Simon & Schuster, 1994.
  • 14
    Cf. R. Picard, J. P. Kerneis e Y. Bruneau, Les Compagnies des Indes -Route de la Porcelaine. Paris, Arthaud, 1966, p. 187.
  • 15
    André Levy, Novas cartas edificantes e curiosas do Extremo Ocidente por viajantes chineses na Belle Époque. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 40.
  • 16
    Como Xie Qinggao cegara em 1796, não se compreende como possa referir-se a eventos posteriores, como a partida da Família Real Portuguesa para o Brasil, em 1808, a não ser que sua narrativa tenha sido ampliada e atualizada por informações prestadas por outros viajantes. Cf. Levy, op. cit. , p. 42.
  • 17
    Cf. Charles R. Boxer, A idade de ouro do Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1963, p. 161.
  • 18
    Sassetti viveu em Portugal de 1578 a 1583, e se refere numa série de cartas pormenores da vida portuguesa da época. Tais cartas só foram publicadas em Florença em 1855, achando-se o trecho que nos interessa mais de perto às p. 125-7.
  • 19
    Jonathan D. Spence, O palácio da memória de Matteo Ricci. São Paulo, Companhia das Letras, 1986, p. 224 e segs.
  • 20
    Padre Manuel Teixeira, Macau no século XVIII. Macau, Instituto Nacional de Macau, 1984, p. 13, 174, 407, 443, 480-2 e 491-2.
  • 21
    Vivaldo Coaracy, Memórias da cidade do Rio de Janeiro. Belo Horizonte, Itatiaia/Edusp, 3. edição, 1988, p. 342: “Em época bem mais recente, foi o Beco dos Ferreiros o bairro chinês da cidade. Nos vetustos sobrados que o margeiam comprimia-se densa colônia de chins”.
  • 22
    Coaracy, op. cit., p. 61: “Sobre a Praça das Marinhas davam as bancas de peixe em que abundavam pescados e mariscos. Aí vinham se abastecer os peixeiros ambulantes, que haviam apreendido com os chins, que tinham aqui exercido o ofício, a transportar os cestos redondos de mercadoria pendurados as duas pontas de uma verga carregada ao ombro”.
  • 23
    Culi parece-nos grafia melhor do que a forma correta, cule: o vocábulo, que para alguns é de origem indiana, pode ser derivado do chinês ku, dor, sofrimento, mais li, força. Culi significaria por conseguinte força ou trabalho do sofrimento.
  • 24
    Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos. Rio de janeiro, José Olympio Editora, 7. edição, v. 2, p. 476. Nem todos parecem, contudo, ter concordado com esse autor – e entre os que dele discordam mencione-se Afonso Arinos de Melo Franco, o qual em Desenvolvimento da civilização material do Brasil. Rio de Janeiro, Sphan, 1944, p. 14, ao tratar das quatro forças que colaboraram para a conformação da nação portuguesa -a moura, a negra, a amarela e a judia -, assim escreveu: “O elemento mouro e o chinês ficaram pela rama, visíveis em aspectos complementares de nossa vida, nalgum telhado em forma de pagode, nalguma janela ciumenta de sarrafos trançados, no monjolo, na serpentina (veículo) e em pouco mais”.
  • 25
    Cardim, em sua “Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica”, in: Tratados da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia/Edusp, 1980, p. 150, afirma ter sido acolhido, na noite de 3 de janeiro de 1584, “em casa de um sacerdote devoto da Companhia, que depois entrou nela”, onde foi servido “com todo bom serviço de porcelana da Índia” (isto é, da China). À p. 157 fala de “ricas camas e leitos de seda”, à p. 161 de “leitos de damasco carmesim, franjados de ouro, e ricas colchas da Índia”, e à p. 164 explica que os homens da terra “vestem-se, e as mulheres e os filhos de toda sorte de veludos, damascos e outras sedas, e nisto têm grandes excessos. (…) São muito dados a festas. Casando-se uma moça honrada com um viannez, que são os principais da terra, os parentes e amigos se vestiram uns de veludo carmesim, outros de verde, e outros de damasco e outras sedas de várias cores, e os guiões e selas dos cavalos eram das mesmas sedas que iam vestidos”.
  • 26
    Cf. Amaral Lapa, op. cit., p. 275.
  • 27
    Cf. Picard et alii, op. cit., p. 33. Mas em seu livro A porcelana chinesa e os brasões do império. Barcelos, Civilização, 1987, XXIII. Nuno de Castro reputa tal cifra muito modesta, afirmando. “No total de viagens efetuadas desde o final do século XV até meados do século XIX, os portugueses terão transportado de 15 a 18 milhões de peças de porcelana chinesa, incluindo brasonadas.”
  • 28
    Amaral Lapa, op. cit., Quadros 2 e 3, p. 331-43.
  • 29
    Um exemplo disso encontramos no respeito aos pais e de modo amplo aos mais velhos, quase tão forte no Brasil Colonial e Imperial quanto na velha China, mas que nada tem a ver com a noção confuciana de piedade filial. Às p. 223 e 224 de seu livro A China e os chins (Montevideo, 1888), o diplomata brasileiro Henrique C. R. Lisboa trata da piedade filial, hiao c’hun, e explica: “Tanto ofende a piedade filial quem desconsidera o pai como o que deita ao chão um pedaço de papel em que se acham gravados os caracteres da língua escrita, ensinados pelo pai da nação chinesa, o imperador Fo-Hi. Nem é menos irreverente filho o ladrão vulgar, do que aquele que deixa de concorrer às festividades em honra dos antepassados.”
  • 30
    José da Silva Lisboa, Princípios de economia política para servirem de introdução à tentativa econômica do autor dos princípios de direito mercantil. Lisboa, 1804, p. 39 e 42, cf. Sergio Buarque de Holanda, op. cit., p. 53.
  • 31
    Cf. Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, v. 2, p. 478, nota 15 da edição citada.
  • 32
    Vivaldo Coaracy, O Caso de São Paulo. São Paulo, Liga de Defesa Paulista, 1931, p. 79-85.